domingo, 31 de outubro de 2010

A Lágrima de Guerra Junqueiro



Guerra Junqueiro
(1850-1923)

A Lágrima

Manhã de Junho ardente. Uma encosta escalvada,
Sêca, deserta e nua, à beira d'uma estrada.

Terra ingrata, onde a urze a custo desabrocha,
Bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha.

Sôbre uma folha hostil duma figueira brava,
Mendiga que se nutre a pedregulho e lava,

A aurora desprendeu, compassiva e divina,
Uma lágrima etérea, enorme e cristalina.

Lágrima tão ideal, tão límpida, que ao vê-la,
De perto era um diamante e de longe uma estrêla.

Passa um rei com o seu cortejo de espavento,
Elmos, lanças, clarins, trinta pendões ao vento.

- "No meu diadema" - disse o rei, quedando a olhar,
- "Há safiras sem conta e brilhantes sem par,

"Há rubins orientais, sangrentos e doirados,
Como beijos d'amor, a arder, cristalizados.

"Há pérolas que são gotas de mágoa imensa,
Que a lua chora e verte, e o mar gela e condensa.

"Pois, brilhantes, rubis e pérolas de Ofir,
Tudo isso eu dou, e vem, ó lágrima, fulgir

Nesta c'roa orgulhosa, olímpica, suprema,
Vendo o Globo a teus pés do alto do teu diadema!"

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.
***
Couraçado de ferro, épico e deslumbrante,
Passa no seu ginete um cavaleiro andante.

E o cavaleiro diz à lágrima irisada:
"Vem brilhar, por Jesus, na cruz da minha espada!

"Far-te hei relampejar, de vitória em vitória,
Na Terra Santa, à luz da Fé, ao sol da Glória!

"E à volta há-de guardar-te a minha noiva, ó astro,
Em seu colo auroreal de rosa e de alabastro.

"E assim alumiarás com teu vivo esplendor
Mil combates de heróis e mil sonhos d'amor!"

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa.
***
Montado numa mula escura, de caminho,
Passa um velho judeu, avarento e mesquinho.

Mulas de carga atrás levavam-lhe o tesoiro:
Grandes arcas de cedro, abarrotadas d'oiro.

E o velhinho andrajoso e magro como um junco,
O crânio calvo, o olhar febril, o bico adunco,

Vendo a estrêla, exclamou: "Oh Deus, que maravilha!
Como ela resplandece, e tremeluz, e brilha!

"Com meu oiro em montão podiam-se comprar
Os impérios dos reis e os navios do mar,

"E por esse diamante esplêndido trocara
Todo o meu oiro imenso a minha mão avara!"

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.
***
Debaixo da figueira, então, um cardo agreste,
Já ressequido, disse à lágrima celeste:

"A terra onde o lilaz e a balsamina medra
Para mim teve sempre um coração de pedra.

"Se a queixar-me, ergo ao céu os braços por acaso,
O céu manda-me em paga o fogo em que me abraso.

"Nunca junto de mim, ulcerado de espinhos,
Ouvi trinar, gorgear a música dos ninhos.

"Nunca junto de mim ranchos de namoradas
Debandaram, cantando, em noites estreladas...

"Voa a ave no azul e passa longe o amor,
Porque ai! Nunca dei sombra e nunca tive flor!...

"Ó lágrima de Deus, ó astro, ó gota d'água,
Cai na desolação desta infinita mágoa!"

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Tremeu, tremeu, tremeu... e caíu silenciosa!...
***

E algum tempo depois o triste cardo exangue,
Reverdecendo, dava uma flor côr de sangue,

Dum roxo macerado, e dorido, e desfeito,
Como as chagas que tem Nosso Senhor no peito...

E ao cálix virginal da pobre flor vermelha
Ia buscar, zumbindo, o mel doirado a abelha!...


25 de Março de 1888


sábado, 30 de outubro de 2010

Saudade



Quantas imagens perdidas
Que a memória não reteve…
Quantas surpresas vividas
O meu coração conteve?


A saudade modifica
E altera os sentimentos
Quanto mais longe se fica
De controversos momentos.


E surgem recordações
Mais vivas ou mais ousadas,
Enquanto outras ilusões
Se apresentam desbotadas.


Transportam a fantasia
A preto e branco ou a cores,
Que o tempo no dia a dia
Acrescentou sem favores.


Não é decerto mentira
O que o poeta recorda,
Dedilhando em sua lira
O passado, em cada corda.


A memória esquece assim,
Se amarga foi a verdade!
Meu Senhor olhai por mim,
Só quero sentir saudade…

Maria da Fonseca

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A Paz de Santo António

Lisboa - Igreja de Sto. António
(photobucket) 

Saímos da linda Igreja,
A Santo António votada,
Com a paz no coração
E a alma purificada.


O pedinte na saída,
A nossa esmola, agradece.
A sua voz muito clara,
A acção simples, enobrece.


Seguimos pela calçada.
A atmosfera tão serena,
Sob um céu azul sem nuvens,
Envolve animada cena.


Como voam os pombinhos
Pra, à frente de nós, pousarem.
E apressados se levantam,
Pra, novo voo, ensaiarem.


E adiante se colocam,
Alegres e divertidos.
Pela luz do belo Sol,
Inspirados, coloridos.


Pretendem acompanhar-nos
Nesta feliz brincadeira.
Decerto querem comida,
Mas nada temos à beira.


Sobrevivem nossos pombos
Como símbolos da Paz,
Nesta Lisboa de antanho
E de raça bem audaz!

Maria da Fonseca

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O Feitiço do Mar



- Ao mar largo, azul, brilhante –
Clamaram os nossos homens.
Ontem incitaste o Infante,
Hoje conquistas os jovens.



Mar de mil faces senhor,
Cooperando co’os heróis,
A descobrir sem temor,
Onde brilham outros sóis!



És imenso, caprichoso,
Capaz de tudo mover
E também ser generoso.
Como te posso esquecer?



De ao pé de ti regressei,
Desse mar que bem antigo
Com saudade eu deixei.
Como trazer-te comigo?



No coração te transporto,
Te retenho na memória,
Conduzi-nos a bom porto.
Senhor Deus, misericórdia!

Maria da Fonseca


quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Margaridas no Outono

Foto de Ilona Bastos

Margaridas tão singelas
Eu comprei naquele dia,
Aniladas e amarelas
A espargirem alegria.


Foi na jarra transparente
Que as coloquei com carinho,
Deitei água docemente
E compus cada raminho.


Ficaram encantadoras
A enfeitar a nossa sala,
Vestidas que nem senhoras
Em belas noites de gala.


Tão inocente o lilás,
O amarelo vibrante,
Sua lindeza me apraz
O colorido incessante!


Mas com o correr dos dias
As corolas se dobraram,
Suas pétalas macias
Descaíram e murcharam...


São efémeras as flores
Que eu gosto de cantar.
Mas sois parte, meus amores,
Deste mundo, meu sonhar!

Maria da Fonseca


terça-feira, 26 de outubro de 2010

A Folha Ferida




Feri uma folha linda
Da minha chuva de prata.
Se tem sistema nervoso,
Decerto me julga ingrata.

- Desculpa, foi sem querer,
Respeito todo o ser vivo
E o trato como irmão - .
Mas um tom acusativo,

De repente eu pressinto.
- Como faltas à verdade,
Tudo comes, satisfazes
A tua necessidade.

Dizes ser filha de Deus
E de Jesus muito amiga.
Até prometes amar
Tua própria inimiga.

Da Criação, os seus dons
Agradeces reverente,
E crês que este mundo existe
Para te servir somente.

O Senhor te deu a alma
Na vida que recebeste.
Já pensaste, minha irmã,
Como te comprometeste?!

Também recebi do Alto
Esta vida que aprecias.
Presa à terra pelo caule,
A louvar, passo os meus dias -.

Maria da Fonseca

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Do Paraíso



Cheguei do paraíso que perdi,
Buscando a vida que me concedeste.
Uma alma sensível me ofereceste
No dia em que, ansiosa, eu nasci.


Na Terra, em corpo e alma, eu cresci,
Saudosa de outro mundo que não este.
A graça que para mim Tu escolheste
Revelou-me o destino que cumpri.


Lutei em vão co’a minha imperfeição,
Apesar de sempre me ajudares
E ouvires meus apelos de perdão.


Senhor meu Deus, ao me abençoares
Na hora em que parar meu coração,
Ao paraíso irei pra me abrigares.

Maria da Fonseca

domingo, 24 de outubro de 2010

A Velha Árvore do meu Jardim

Pássaros silvestres de SP - by Zeramos

Junto ao meu lar tu viveste
Airosa, viva, feliz,
Com o tempo envelheceste,
Secas folhas sem matiz.


Quantas vezes inspiraste
Meus versos, co'a singeleza
Das aves que encantaste
Com elegante lhaneza.


Logo de manhã as via
Saltitantes a brincar,
Nascia em mim a alegria
De as poder contemplar.


Agora não tens mais folhas,
Mas dos galhos o balanço
Seduz ainda as escolhas
Do pardal e do picanço.


Há pouco ainda te vi
Com os pássaros nos ramos,
Eram tantos que senti
Porque em pé nos conservamos.


Que Deus nos mantenha assim
Com as nossas missões lindas,
A tua no meu jardim,
Eu a dar graças infindas!

Maria da Fonseca


sábado, 23 de outubro de 2010

A Lembrar Camões

Portal São Franscisco


Sou das muitas que, em criança,
Se prenderam a Camões.
Vibrei com o seu sentir,
Chorei co’as desilusões.


Sonhava ser a donzela
Por quem tanto ele sofria.
Ser a musa inspiradora,
Era minha fantasia.


O Senhor me destinou
Um fado bem diferente.
Mas voltei a recordá-lo
Aquando da Pátria ausente.


Meu amado eu encontrei
Nesse País tão distante.
Não me encantou com poemas
Mas co’um coração amante.


E assim pela vida fora,
Sempre que versos eu lia,
Com os do grande Camões,
Minha alma se comprazia.


Agora tempo passado,
Ganhei outra consciência,
Do Lusíada que foi,
Da sua grande excelência!


A cantar nossa epopeia
Transcendeu todos os mais.
Poeta, Herói Português,
Faz parte dos Imortais!

Maria da Fonseca

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Jubileu de Cristo Rei

Almada - Maio de 2009


Nossa Senhora de Fátima,
Imagem da Capelinha,
Visitas esta Lisboa
Toda tua e também minha.


Entre saudações, caminhas,
Do povo por Ti amado,
Que canta e Te dá louvor
Por ter sido abençoado.


As crianças vão alegres
Mas os pais preocupados,
Necessitam Teu amparo
Nestes tempos conturbados.


A cidade Te recebe
Com lindo Sol a brilhar
E as águas mansas do rio
Sobre as quais vais navegar.


Jubileu de Cristo Rei
Amanhã se comemora.
Nossa Senhora vai estar
Junto ao Seu Filho que adora.


És Maria, peregrina,
A atravessar nosso Tejo
Pra celebrar com Jesus.
É esse o nosso desejo!


Roga por nós a Teu Filho
Que continue a abraçar
A nossa terra e o mundo
Para a Paz irradiar!

Maria da Fonseca


quinta-feira, 21 de outubro de 2010

E Cantarei a Beleza

Chania - Creta
foto de Luiza Melo

Gostar dos versos que escrevo
É um gosto que me apraz.
Reviver o meu enlevo,
A minha impressão fugaz.


Dizes pra não desistir,
A minha Mestra também.
Eu penso não insistir
No mesmo estilo, porém.


Sonho adoptar outra forma
Sem contagem, sem ter rima,
Deixar de cumprir a norma
Enquanto a musa me anima.


Anseio encontrar meu jeito
Pra nova fase tentar.
Quem dera que este meu feito
Seja pra continuar.


De inspiração necessito,
De me aplicar ‘inda mais,
Pra versar o que acredito
E vou contar aos demais.


Transmitir era meu lema,
E como é bom recordar!
Mas ao singelo poema
Pode a verdade faltar!


Serão versos, será prosa?
Disso não tenho a certeza.
Mas serei melodiosa
E cantarei a beleza.

Maria da Fonseca

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Súplica

Jardim da casa de Claude Monet

Tu me abandonaste, saíste daqui,
Sem uma palavra pra me consolar.
P´las flores passaste sem sequer olhar,
E foste-te embora, deixando-me aqui.


Espalhei aos ventos meu amor por ti,
Aos céus, às estrelas, às ondas do mar.
E aos cravos e às rosas eu quis perguntar,
Porque é que partiste, porque te perdi.


E à lua subindo no azul, implorei
Que lesta enviasse seus raios brilhantes
À tua procura, pedi, supliquei,


Que pra mim voltasses, pra mim, como dantes.
Findas as lágrimas que por ti chorei,
As minhas flores rescendam radiantes!

Maria da Fonseca


terça-feira, 19 de outubro de 2010

Hortênsias

Trevo de acesso a Nova Petrópolis


As hortênsias do canteiro
Coram cada dia mais.
Não esquecem bom jardineiro
Sempre a cuidar dos quintais.


Não creio ser timidez
O que tanto as faz corar.
Mas terá sido talvez
Porque o Sol as quis beijar!


Retribuem co’a beleza
Quem as olha com ternura,
Como encantada princesa
Sob límpida moldura.


Nunca sonhei ver assim,
Sem que à ‘strada me fizesse,
Tais flores neste jardim,
Junto ao jarro que fenece.


Em Petrópolis amava-as
Por tão lindas elas ‘starem,
E com carinho afagava-as
Por Sintra me recordarem.


Agora comigo aqui,
Estas hortênsias rosadas
Lembram-me o que então vivi
Nessas paragens amadas!

Maria da Fonseca

 


segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Campainha Azul


Linda, a flor que me of''receste
De pétalas aniladas.
Linda, a flor que tu colheste
A recordar madrugadas.


Do arbusto bem nascida,
Linda, a flor te encantou,
Atraiu-te, seduzida
P'lo carinho que gerou.


Aceitou contigo vir,
Embora de vida breve,
Pra trazer outra a florir
No mesmo raminho leve.


Ainda olho a flor sedosa
Que domingo me trouxeste.
Dum botão surgiu mimosa,
Campainha azul celeste.


Nosso amor também é assim
Sempre vivo, renovado,
Sou a flor do teu jardim
Feliz por 'star a teu lado.

Maria da Fonseca

domingo, 17 de outubro de 2010

O Céu de Lisboa


Entre as nuvens vislumbrado,
O azul do céu me fascina,
Porque o vejo resgatado
Pelo Sol que o ilumina.


Sinto o ar muito mais leve,
Inspiro um maior prazer,
Que perderei muito em breve
Quando o azul se esconder.


Mais além, outro, entrevejo,
Pedaço de céu azul,
É a visão que desejo
E rogo que não se anule.


Mesmo com sua brancura
Estas nuvens não me encantam;
A cor azul é doçura
Para todos que a descantam!


Sempre respiro melhor
Ao encher os pulmões de ar
Quando o azul é maior
E as nuvens 'stão-se a afastar.


Conforme o sopro do vento,
A pressão e a humidade,
Assim nos causam tormento
Ou nos dão felicidade.

Maria da Fonseca

sábado, 16 de outubro de 2010

Impressões

As papoilas de Claude Monet
Museu d'Orsay, Paris 

Certos momentos captar,
Cheios de vida e de luz,
Na arte de bem pintar,
É ideia que seduz.


Impressão, breve sentir
De uma loucura de artista.
Ele sonha transmitir
O que encantou sua vista!


Não foi só o que ele viu,
Mas também o que sofreu.
Comunica o que sentiu,
E o que mais o comoveu.


Cresce a sensação esteta
P’ra logo ser partilhada,
Como obsessão de poeta
Pela sua enamorada.


Da luz nota a variação
Que aplicará na pintura.
Grande é a sua emoção
Ao esboçar de uma figura.


Com as cores joga enfim
A mostrar seu ‘stado de alma.
A tarde inebria assim,
Só à noite ele se acalma.


Seja pintor ou poeta
Eu nas obras me detenho.
- Criar a impressão concreta
Transmitindo-a com engenho!

Maria da Fonseca